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Carta à Minha Cidade, por João Félix


     Nasceste do coração da terra, no tempo em que o mar ainda era jovem. Jorraste, mais quente do que o fogo, subiste o negro abismo e brotaste na superfície da água, tão ingénua e vulnerável como uma flor quando germina no cimo da terra. E durante anos inumeráveis assim permaneceste, enquanto a tua cor negra e escura como o lado oculto da lua se tornava em verde reluzente, e tu parecias uma enorme pedra de jade a flutuar no oceano. E enquanto esses anos passavam, só as gaivotas e as baleias te conheciam, e os ventos que sopravam do Ocidente morriam antes que pudessem trazer rumores da tua existência aos ouvidos do mundo conhecido.
     Mas alguma brisa persistente deve ter cruzado os mares, e, na sua derradeira força, terá falado aos marinheiros das costas ocidentais sobre aquelas rochas verdes e negras que se erguiam no meio do reino de Neptuno, cobertas por um manto cinzento que as ocultava dos olhos do mundo, e das quais saíam por vezes línguas de fogo que faziam a terra tremer de dor, e eles fizeram-se à vela e atravessaram o cerúleo, e assim que avistaram as tuas costas e os teus campos cor de esmeralda, traçaram-lhes linhas negras de lava.
     Eras tu então, que durante séculos incontáveis não foras mais do que uma pedra escura perdida no mar, a capital do Oceano, e os olhos do mundo de que te refugiaras durante tanto tempo, e que durante todas essas eras estiveram cegos para ti, fitavam-te agora, e eram-te apontados dedos, punhos, espadas, lanças, e proas de navios. Mas tu, sozinha na vastidão do mar, não tiveste medo, e não te ajoelhaste perante aqueles que traziam a bandeira amarela e rubra, pois tu és feita da pedra vinda do mais fundo do coração de Gaia, que ira nenhuma contida em corações humanos pode subjugar. E como Bóreas faz tombar os mais fortes robles e pinheiros nas encostas das montanhas, obriga os mais antigos e fantásticos colossos das florestas a curvarem-se perante a sua força devastadora, mas o pequeno e robusto salgueiro permanece em pé e mais altivo do que nunca, assim tu resististe e não cedeste a esse vento voraz que soprou do lado oriental do mar, que com punho de ferro esmagou o orgulho de reis e povos grandiosos. Tu brandiste gloriosamente a tua espada incandescente das entranhas do submundo, a que escudo nenhum feito por artes humanas pode resistir. E depois que a tua ira ígnea se extinguiu nas águas do oceano, e as cinzas que pairavam no teu ar outrora limpo e luminoso se desvaneceram, os deuses observaram-te, e viram como tu passaste por fogo, pedra, terra e água, para te ergueres, mais magnânima do que a mais alta e forte torre dos homens, e olhares a cúpula azul do éter, como que desejando ardentemente alcançá-la e ver o que existe para lá das estrelas…
     E que mais posso eu escrever-te, eu que me sento e te olho pela janela do meu quarto, enquanto a minha caneta corre pelo papel e traduz para palavras tão mortais como os homens uma glória imortal? Pois ainda ecoam, e ecoarão eternamente pelos céus, ditos por vozes divinas, os nomes daqueles que construíram, nesta angra, uma cidade de heróis.


João Félix nasceu em Angra do Heroísmo em 1990. Neto do poeta Emanuel Félix, desde a infância que encontra interesse na literatura, tendo escrito vários textos e poemas que já foram publicados em alguns jornais e revistas. No entanto, é sobretudo à música que vota a sua maior dedicação, com o projecto "The Chamber". Neste momento reside e estuda em Lisboa. Poema escrito em 2007. Autorização da publicação do poema e da fotografia de 01-11-2009.

Fonte:http://www.dacores.com/poemas/ver.php?id=31

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