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Estórias de São João do Pico... Roçadores de mato

"Eu lembro-me muito bem do Ti João Cabrito e da sua equipa de roçadore. E eu lembro-me de aos doze anos querer ser, como eles, um roçador de urzes. Lembro-me de querer subir à montanha para avistar ao longe a vila das Lages, para ver , lá do alto, o nascer do sol, para almoçar com os pastores o leite quentinho das vacas ordenhado no local.
Aconteceu que o Ti Jaime das Miguelas, Jaime Leal de seu nome verdadeiro, soube destes meus sonhos e perguntou-me se queria ir aprender a roçar nas suas terras. E prometeu-me quatro escudos por dia, leite e queijo para duas refeições. E disse que eu teria de levar o bolo, um fiocinho e umas luvas.
Achei a oferta generosa e fui falar com meus pais que se não opusera. Meu irmão Fernando, com dez anos quis ir também e Ti Jaime disse-lhe que sim.
E fomos logo nesse dia à tenda do ferreiro Ti Benzinho encomendar dois foicinhos para roçar urzes.


O Ti Benzinho olhou admirado para nós e disse:
- Mas a Canada do Papia tem assim tanto urze para roçar?!
- Mas nós vamos roçar para as pastagens do Ti Jaime das Miguelas!
Os homens que estavam na tenda olharam para nós e o Ti José do Pombo chamou sovinaao seu vizinho por recorrer ao trabalho de rapazes tão pequenos.
-Então qual é o tamanho do foicinho que querem?
- Queremos igual ao do Ti Cabrito!
- Mas ele é um roçador de primeira. Não conseguem manejar um foicinho assim!
- Então faça-o mais pequeno, mas igual.
No dia seguinte meu irmão e eu tínhamos os dois foicinhos. Agora falatavam as albarcas, as meias de lã e umas luvas.
Meu pai fez-nos dois pares de luvas com a pele de uma cabra.

As albarcas fui encomendá-las ao sapateiro Ti Jeremias. Eu levava já um pedaço de pneu e correias fortes de pele de vaca. Prometi pagar-lhe ao fim do verão quando recebesse o dinheiro de roçar.
- Mas que história é essa de ir roçar, admirou-se o sapateiro.
- É que eu vou roçar para as pastagens do Ti Jaime das Miguelas!
- Tu vais roçar para o meu irmão? Então agora o meu irmão vai roçar pastagens com rapazes?!
Ti Jeremias voltou a olhar para mim e disse:
- Olha lá, para que queres tu dois pares de albarcas?
- Umas são para mim, outras para o meu irmão!
- Ah! Agora compreendo. Temos então uma equipa de roçadores. Para pagar no fim do verão, não é? Aceito o contrato.
Ti Jeremias foi buscar uma folha de papel, colocou-a no chão e disse-me:
- Põe aqui o teu pé. E fez um risco em volta do meu pé que ficou marcado no papel.
- E o teu irmão?
- Meu irmão ficou em casa. Mas faça igual. Ele é mais novo mas é mais alto do que eu.
Quando voltei à tenda do sapateiro no fim da tarde as albarcas estavam prontas tal qual como eu gostava.

Nessa noite fomos cedo para a cama. O Ti Jaime das Miguelas marcara a saída para as três da madrugada poisqueria ordenhar as vacas ao amanhecer.
Minha mãe chamou-nos cedo e preparou-nos alguma coisa de comer.


Subimos com Ti Jaime a Canada do Arrasto e depois o caminho da montanha guiados pela luz de uma pequena lanterna que mal iluminava o caminho projectando as sombras que dançavam como fantasmas à nossa frente.
Atingimos finalmente as pastagens. Havia já luz do dia, cantavam os pássaros e sentia-se o cheiro da erva molhada.
O Ti Jaime mungiu as vacas e o nosso primeiro almoço foi esse leite quentinho com o bolo que traziamos.
O Ti Jaime começou então o seu trabalho de roçador. A seu lado os nossos foicinhos procuravam acompanhá-lo cortando urzes e silvas.
Deixáramos de pensar nas nossas brincadeiras de criança. A partir desse momento éramos já uns homens."

Fonte:
Martins, Manuel, Longínquo Despertar, O Alvião, s.d., págs. 19 - 21

Fonte das imagens:
Martins, Manuel, Longínquo Despertar, O Alvião, s.d., págs. 18, 22

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