As tradicionais
violam da terra, violões ou cavaquinhos, com o formato e arabescos que a
imaginação inventa. Serafim Silva é um dos últimos construtores de violas na
Graciosa e pouca coisa lhe dá mais gozo.
“A primeira viola que eu fiz foi esta, 15
anos que eu tinha”, conta Serafim enquanto pega no instrumento de ar
rudimentar, “tudo torcido”, um «amo-te» escrito a branco na lateral. “O meu pai
era carpinteiro e eu comecei logo a trabalhar em novinho. Saí da escola com 12
anos e comecei a trabalhar como carpinteiro também”.
O avô tocava viola,
ensinou-lhe os primeiros acordes, foi para a filarmónica em miúdo. Mas na viola
do pai, que a mãe punha todas as manhãs religiosamente sobre o leito dos
lençóis porque “o calor da cama faz bem ao som do instrumento”, ninguém “podia
tocar”. “Ora, eu queria tocar viola, mas não tinha dinheiro para comprar uma,
por isso é que me obriguei a fazer aquela.” Depois fez outro violão, e daquele
outro entretanto foi restaurando alguns e aprendendo.
Estamos em Santa
Cruz da Graciosa, na casa de Serafim Silva, 55 anos, um dos poucos construtores
de violas na ilha açoriana. Lá ao fundo, na parede espelhada da sala de estar,
estão filas e filas de violões, violas da terra, cavaquinhos e guitarras de mil
feitios. Vai pegando num e noutro instrumento, dedilhando-lhes cada história.
Esta era a antiga
viola do bisavô. Aquela mais pequena fez para o neto de três anos. Daquela o
som sai pelos olhos, nariz e boca de uma caveira negra desenhada no tampo,
construída para oferecer a um amigo motard (que preferiu que
ela ali ficasse guardada para não se estragar).
Muitas fogem ao
formato convencional. Dá-lhe gozo pôr música em corpos mudos; dar som a
recordações e ideias. Um cavaquinho feito a partir de uma cabaça, uma viola com
carapaça e cabeça de tartaruga, outra com a caixa redonda a lembrar a peneira
que a mãe utilizava “para peneirar a farinha para o pão”, outra com um
casamento entre a viola da terra e o violão, dois cabos e cordas num corpo só.
“Uma viola tem que ter duas coisas: um bom som e afinação.” A partir daí, é a
imaginação que comanda.
Enérgico e apaixonado
sobre o tema, Serafim vai-se atropelando na conversa, há sempre mais uma viola
para mostrar, uma história para contar, umas cordas para beliscar e
desculpar-se por não estarem afinadas. “Não sei tocar muito viola da terra, no
violão dou uns toques." Ainda assim, pega numa de 12 cordas, os típicos
corações recortados, o floreado desenhado no rodapé. “Isto é o nosso fado”,
apresenta aos primeiros acordes. “Uma jóia sagrada / Era a minha querida mãe /
Ela morreu, fiquei sem nada / Estou mais pobre do que ninguém”.
Serafim é auxiliar
de acção médica há 36 anos, mas durante muito tempo teve também uma
carpintaria. Quando pôs fim ao negócio decidiu que o trabalho com a madeira
passaria apenas pelo hobby, pela paixão: construir instrumentos.
São eles que lhe ocupam grande parte dos tempos livres, passados na pequena
oficina num canto do jardim das traseiras, com a velha gata sempre a pedir
atenção. Isto quando não corre os cafés e bares da ilha com as bandas onde
canta e toca ou não segue Graciosa fora com a mota.
Dos 50 instrumentos
que terá feito nos últimos anos, talvez nem tenha chegado a vender dez. Mas
isso pouco lhe importa. “Se eu tivesse um bom dinheiro não vendia nenhuma”,
confessa. É o fazer que lhe dá especial gozo. O contacto com a madeira, torcê-la
a seu bel-prazer, desenhar-lhe os caprichos da imaginação e, no fim, ouvi-la
soar afinada. É, por isso, que estão ali quase todas as que fez e não é sem um
certo pesar que vê alguma partir com novo dono. “Tenho a alegria de vender mas
perco uma boa guitarra.”
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