O passado baleeiro nas Lajes do Pico...


A caça á baleia terminou nos Açores em 1984. No entanto, em 1987, nas imediações da ilha do Pico e como forma de protesto, apanhou-se a última baleia com bote e arpão como em meados do século XIX.
Hoje, o património baleeiro é o ex-libris da vila das Lajes do Pico, cartão de visita de excelência, testemunho do passado e estímulo para o futuro.
Homens em terra, com binóculos, ocupavam-se das vigias em busca dos "gigantes do mar", passando-se, por vezes, dias e dias sem avistar uma única baleia.
Em terra, dedicando-se às suas tarefas do campo, muitos homens aguardavam o sinal que poderia tornar as suas vidas um pouco melhor. Os tripulantes dos botes baleeiros, as "companhas", e, mais tarde, dos "gasolinas" (pequenas embarcações rebocadoras dos botes), eram homens com outras profissões, muitos deles com ocupações agrícolas. Com as suas "soldadas" anuais, depois de vendido o óleo nos mercados nacionais e internacionais pelos armadores (sociedades baleeiras), alimentavam famílias muitas vezes numerosas. A dureza e perigosidade desta actividade faziam quase sempre parelha com situações de pobreza ou pelo menos de extremas dificuldades financeiras. 
Quando suava o estalar do foguete no ar (sinal dado pelo vigia) a corrida para a casa dos botes era espavorida e sem demoras. Deixavam a meio os seus afazeres, muitas vezes nem se despediam da família, mas ao passar em frente à igreja não se podiam esquecer de fazer o sinal da cruz.
Muitas vezes eram as mulheres que, sabendo que os homens não tinham tempo, vinham trazer o pão e água ao bote se não seguiam para a dura faina do mar de estômago vazio.
Era o início de uma jornada longa e difícil, em que se opunham sete homens num bote a uns gigantes - aos gigantes do mar!
Tudo terminava com o reboque do cachalote para terra... Todavia nem sempre tudo acabava bem... nem sempre tudo corria na perfeição. Era uma vida dura, repleta de esforço e sofrimento, feita única e exclusivamente por motivos socio-económicos, pois vivia-se numa economia agro-pecuária muito débil.
Depois de capturados, os grandes cetáceos (cachalotes) eram objecto de transformação, por processos de natureza artesanal, sobretudo para a extracção do seu óleo. Até cerca de 1930, a extracção do "azeite de baleia" era feito pelos próprios baleeiros, por um processo denominado "a fogo directo", em típicos "traióis" (dois caldeiros adossados e assentes sobre uma fornalha).
Este penoso trabalho foi a pouco e pouco maioritariamente substituído por fábricas de derretimento (em autoclaves a vapor de grande capacidade). Em meados do século XX, a industrialização deste processo contribuiu significativamente para o desenvolvimento económico da vila das Lajes com a construção, em 1948, da Sociedade de Indústria Baleeira Insular, Lda. – SIBIL.
A Fábrica da Baleia, como ainda hoje é conhecida, iniciou a sua laboração em Junho de 1955, exportando um pouco para todo o mundo óleos, farinhas e o valioso âmbar. Encerrou a sua actividade no início dos anos oitenta – depois de vicissitudes várias, a que não foram alheias a desfavorável conjuntura económica mundial e as pressões das organizações ecologistas. O espaço foi requalificado, sendo actualmente o Centro de Artes e de Ciências do Mar, local de referência do património baleeiro da vila das Lajes, e da ilha do Pico.  

 
Deixo aqui alguns testemunhos de antigos baleeiros:

"Mestre Gil
Aqui no pico teve morto dentro do bote

Aqui, mas aqui no Pico, tamém tem ua boa. Boa... pois é dessas que acontecem mal.
O senhor há-de-se lembrar quando foi do Manuel da Inácia, que se pisou aqui c'o Manuel da Emília... o Manuel da Inácia, que tá hoje pr'a América.
Também teve morto dentro do bote. O bote revirou... A baleia trouxe o pano...calhou. Foi um calhamento. Ela foi por sotavento, alevantou o rabo ò ar, trouxe o pano embrulhado no rabo de volta a baixo, e bumbo e tudo. E o rapaz apanhou ua pancada na cara. Ele teve cma morto.
O bote revirou, tavam lá nadando todos. Depois agarrei-me ò diabo do rapaz, cma era munto amigo co ele. O bote foi revirando sobre mim. Eu queria agarrar a borda mais alta e empurrei-o assim pró ar, mas ele ficou metido debaixo do mar. Agarrei a borda mais alta, de cima pra baixo, e vi-o assim cma cambrelar. Um deitou-le a mão, também  mal respirava.
Esse tal rapaz, se nã toma respiração, o tempo que teve metido na água á espera que viesse o bote da Calheta, o João Graxinha...
O João Graxinha é que veio tomar a gente, no tal dia. Veio tomar a gente, e é que nos salvou. A gente pra dizer a verdade, foi um bom home."


 
"Mestre João Maurício
Deitei-le a mão ò cabelo

Ua outra. Eu era trancador do João Jsé António. trancámos ua baleia debaixo de rofe. Ele certamente já tinha a linha passada nos choques, quando a baleia veio a puxar pelo bote e o bote virou. Ê botei a mão ò brandal de barlavento, o bote foi-se virando, ê sentei-me em cima da borda e fiquei ali escanchado. O bote tava c'o pano deitado lá fora e tava um marinheiro debaixo do pano, o filho do joaquim Cramujo. Ê experimentei a puxar o pano a ver se tirava o rapaz, mas o pano nã vinha nada. Depois o bote vai e fica co a quilha pró ar e o mastro, c'o pano, ficou direito pró fundo. Ê tava a vigiar ali pra ver se via o rapaz sair por algua banda, quando ele me sai pela borda do bote fora, já com espuma a sair pelo nariz, dois riscos de espuma que lhe chagavam òs queixos. Assim qu'ele abicou deitei-le a mão ò cabelo, nem sequer foi ò braço, foi ò que pude agarrarmais pero, e puxei-o pra cima do bote. Ele tava atrapalhado. Depois, saltámos prá lancha - ê saltei pra dentro da lancha c'o ele ás costas - e viemos co ele prà terra. Daquilo agarrou ua friagem na bexiga, ainda passou mal."


"José Pimentel
Ali ficou cortado a meio

E doutra vez... Baleias de cardume. Trancámos ua e mataram. E o mestre Jsé Costa, das Ribeiras, trancou ua também ò pé da gente. E mataram os dois ali. Até passaram as linhas. Passaram as linhas e amanharam lá aquilo e mataram. Puxaram a bandeira. Ele pôs também a bandeira na sua. Parece-me que tinha trancado já duas, parece-me que aquela era a terceira.
Vieram por i abaixo, chegaram cá mais abaixo, e elas saíram aí e torna outra vez a trancar.
E a gente à espera do António Vieira. E quando nesta altura ele tranca. Tranca, vai um embrulhozinho, coisa pouca, a linha sai-le dos choques, vem pra trás, tava lá um Manuel Neves, das Ribeiras, um home pesado, já de certa idade, e atirou c'um por cima da linha e atirou-o prá outra banda. E cá atrás, ò remo da celha, tava um rapaz novo e caiu assim pra diante. A linha veio pelo lado dintavante atrás e ê vi a linha passar assim nele. Já tava quase a meio do bote e o bote revira. Revirou, e lá ficou o rapaz. Esse - nunca mais o viram. Nunca mais apareceu. Ali ficou cortado ò meio."


"Mestre José Batata
Fui-le dar ua cabeçada

Vou ainda contar ua que se passou aqui no Pico, nas Lajes, antes d'eu ir balear pra fora.
Trancámos ua baleia, aqui nas Lajes, e ela arrebentou-nos a linha. E ódepois, quando ela saiu acima do mar, tornámos a ir a ela e tornámos a trancar e ela ódepois meteu-se debaixo do bote, dá ua pancada cá trás, mesmo na popa, e atirou-me ò ar e fui-le dar ua cabeçada. Fui ò ar e fui de cabeça pra baixo direito a ela. Fiquei estonteado e ela depois é que m'abaixou c'o rabo pra debaixo d'água, e ainda foi bom, se não, ela mata-me. E nessa altura, ê fui pra baixo, e depois de tar em baixo, vim a mim, tava aquela água fervida, parecia-me que tava lá munto pró fundo, e vim por i fora. Vim sair ò pé do bote do ti Jsé Vieira, e o ti Jsé Vieira disse:
- Home, nã t'assustes!
- Home, ê nã tou assustado, tou é pisado aqui num quarto.
Mas não era dos quartos, fiquei fisado foi dos rins, até pra torcer na cama era um caro custo. Aquilo foi do peso dela, quando me levou pra debaixo d'água."


E assim se fez parte da cultura de um povo...

Cátia Goulart

Bibliografia:
Caderno Sibil, Agosto 2007
Dias de Melo, na Memória das Gentes, Livro I, Volume I (1985: 48, 95, 102 e 89)

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