O Rabo Torto...


“Segundo uma descrição do Dr. Leite Pacheco de 1903, depois da introdução do gado bravo na ilha Terceira, tornou-se indispensável a selecção de uma raça canina que dispusesse de extraordinária força física, boas aptidões olfactivas e que fosse instintivamente dominadora com o gado. Uma raça com tais características seria a ideal para o auxílio dos pastores quando tivessem que manejar o gado nas criações do interior da ilha, marcadas por superfícies acidentadas que tornavam ainda mais árduo o trabalho dos homens do mato.
O cão de fila da Terceira terá resultado de cruzamentos, aleatórios ou não, entre os animais trazidos para a ilha pelos primeiros povoadores e pelos espanhóis, essencialmente canídeos do género dogue, que levaram ao aparecimento de um tipo de animais de elevado grau de apuramento com caracteres físicos distintos de qualquer outra raça.
À laia de estalão da raça, poder-se-á afirmar que estes animais eram caracterizados por: um corpo rectangular, articulações fortes, altura de 60 cm, pescoço curto, cabeça quadrada, boca bem rasgada, guarnecida de dentes fortes, lábio superior pendente, pelagem geralmente amarela em diferentes gradações, algumas vezes malhada de branco, raramente fulva. A cauda do legítimo fila da Terceira apresentava uma irregularidade na disposição dos primeiros coccígeos conferindo-lhe uma forma de S, facto de onde advém a designação: Rabo Torto. A todos os caracteres morfológicos juntavam-se ainda as características de um verdadeiro cão de fila: a docilidade, a lealdade e obediência que em quaisquer circunstâncias devotava ao dono. Ao contrário de outras raças que não dão ouvidos à voz do dono, o fila da Terceira “… só pega no gado quando a isso é mandado, e larga imediatamente a presa, à voz e muitas vezes a um simples aceno de mão conhecida.”
A ilustrar, mesmo que ao de leve, as suas características de lealdade e obediência de verdadeiro fila, aqui fica um relato do autor acima referido:
“Era em 1873 – brilhante festa tauromáquica, afamadíssimos touros do Morgado João Borges do Canto da Silveira. Praça de S. João, em Angra, à cunha – 6.° touro, preto, morzelo - corpulento como já não há, de muito sentido e de muito pé, com querença depois de passar ao segundo estado e então difícil de lidar; ainda assim recebe castigo.
Toca a recolher, salta à praça o pastor com o seu fila – o Maroto – agregado, homens de trabalho e cabrestos vacas – para a retirada do bicho, que se embrulha com as vacas e, parecendo segui-las para o curro, prestes reponta. Dista três metros do pastor (maioral) Francisco Ferreira Machado, que lhe vira as costas, para se escapar pela trincheira. Mas está longe. A meia distância o touro vai pulverizá-lo. Há um momento de ansiedade geral, precursora de uma grande catástrofe.
De soslaio, o Ferreira vê o touro sobre si e despede em brado aflitivo, estridente, em último arranco:
- Pega, Maroto!
Antes de findar aquele grito angustioso, já o valente cão, de um salto instantâneo, imperceptível, como impelido por intensíssima força magnética, estava pendurado na orelha do touro, obrigando-o, a pouco e pouco, a curvar a cerviz, até rojar pela terra de ventas ofegantes e em breve cobertas de baba ensanguentada, bramindo, de raiva e dor, deplorando, em rugidos prolongados e penetrantes, a sua impotência, perante a extraordinária força do invencível molosso!
Nesta ocasião, que lindo, que admirável, que sublime quadro!...
Um delírio indescritível, aclamações estrondosíssimas, gritos, lágrimas, risos convulsos, agitações frenéticas de milhares de lenços, aplausos estrepitantes, como seria nos anfiteatros da antiga Roma dos Césares. Na arena – um homem de braços cruzados, o Ferreira, encostado à trincheira, a dois passos, um touro robustíssimo, dominado pelo vigor incrível de um pequeno animal: mais além o grupo de vacas, esperando a chegada do companheiro. Simplesmente arrebatador.
Á voz terminante do pastor: - Larga, Maroto – desfaz-se em um momento o quadro, volta ligeiro o terrível mastim para junto do dono, e o touro, como que aviltado pelo severo castigo, lá segue, humilde e cabisbaixo, os cabrestos e entra vencido e convencido no touril!
– Só visto!”
Infelizmente o desaparecimento desta nobre raça é um facto, não existindo na ilha Terceira (e que se saiba em mais nenhuma parte do mundo) um único cão que possua, completamente, os distintivos puros desta raça.”

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