Peter Café Sport, a paragem do mundo - por Lélia Pereira Nunes


Não me perguntem qual a Ilha do arquipélago açoriano é a mais bonita. Não sei responder citando apenas o nome de uma e de outra. Já me perco em infinitas descrições dessas ilhas plurais na sua diversidade e tão singulares nas suas diferenças. Impossível dizer “nesta constelação de ilhas em que cada uma complementa a outra”. Afirmo convicta, lembrando a deslumbrante descrição de Raul Brandão em As Ilhas Desconhecidas, fascinado com o “luxo da verdura”, com a luz dos Açores que ali “atinge talvez a perfeição”, com a pungência cromática e no pulsar de cada ilha que o escritor conheceu em viagem empreendida nos idos 1924. Ninguém fica imune diante da magnitude daquela paisagem tão exuberante que abraça a alma da gente, deixando uma sensação deliciosa de plenitude, de embriaguês, um gosto de querer mais, de repetir a dose. É como o Gin tônica servido no Peter Café Sport, o Bar do Peter, lá na Ilha do Faial. O melhor do mundo! É impossível de beber uma só dose daquele Gin tônica…
Posso até não responder qual é a ilha mais bonita ou qual eu gosto mais. Gosto de todas, isso é sabido. Mas, com certeza, um dos lugares que mais gosto de estar e que me remete em direto a Ilha de Santa Catarina e mais precisamente ao Bar do Arante, que fica na humilde comunidade de pescadores do Pântano do Sul, é o Bar do Peter que tem por endereço a freguesia das Angústias, região central da elegante e cosmopolita cidade da Horta, na Ilha do Faial.
O Bar do Arante se situa no extremo sul da Ilha de Santa Catarina, numa bonita enseada que tem à frente as Ilhas Três Irmãs e Moleques do Sul, onde pescadores vivem na azáfama do mar com suas coloridas baleeiras “açorianas” inspiradas nas antigas baleeiras “americanas” e adaptadas ao mar catarinense como explica, exaustivamente, aos turistas o Arantinho, proprietário do nosso mais famoso e premiado bar com seus milhares de bilhetes do mundo pendurados no teto e paredes.
O Peter Café Sport, eleito em 2009 o melhor bar do mundo para os navegantes (e não só), numa competição promovida pela Wight Vodka para assinalar os marcos referenciais dos viajantes de todo o mundo que cruzam mares e aproximam hemisférios, é a paragem do mundo, ponto de encontro e correio dos navegadores que fazem escala na Ilha do Faial. Localizado sobre a baía da Horta, esta beleza incrustada entre a Ponta da Espalamaca e o Monte da Guia, abre sua porta e janelas, para a visão panorâmica da montanha do Pico, compondo com a cidade o “camarote de frente para aquele palco de todo o ano” nas palavras de Vitorino Nemésio em Mau Tempo no Canal (1944). Vizinho da Marina da Horta, porto construído em 1876, que serve de parada estratégica a um grande número de embarcações em viagem pelo Atlântico. Ali, marinheiros de todas as bandeiras encontram um porto seguro para o breve descanso de suas aventuras e no Bar do Peter, no ambiente acolhedor e único, festejam a alegria do (re)encontro.
Nos muros da marina está o registro da passagem dos navegantes em centenas de pinturas, desenhos multiculturais, traçado de rotas, assinaturas, datas, dedicatórias poéticas, como uma crença de boa sorte, um costume da gente do mar que já virou uma tradição tanto quanto o Bar do Peter na sua mania de ser correio do mundo.
A história do Peter Café Sport se entrecruza com a história da cidade da Horta, com a vida da marina. Sobretudo, é a história de vida da família Azevedo.
No começo, foi uma pequena loja de artesanato regional, o “Bazar do Fayal”, instalada no final do século XIX por Ernesto Lourenço de Azevedo no antigo Largo de Neptuno (hoje,Largo do Infante). Depois, já no início do século XX, a loja muda para o atual endereço e passa a se chamar “Azorean House” juntando a venda de artesanato regional ao funcionamento de um bar. Anos mais tarde, o filho do fundador, Henrique Lourenço de Azevedo, transfere o estabelecimento para um prédio vizinho trocando o nome para “Café Sport”, dada a sua paixão pelos esportes. Assim nascia o Bar que um dia não só alcançaria projeção mundial, mas seria uma verdadeira instituição internacional.
Quanto ao nome Peter, teve origem no carinhoso apelido dado ao jovem José Azevedo, filho de Henrique Lourenço, por um oficial do navio Lusitania II da Royal Navy por achá-lo parecido com seu filho Peter. Um nome que portaria para o resto da vida de forma indelével e agregaria ao nome do Bar para sempre. Características como a pintura azul forte e preta da fachada, charmoso mobiliário e o Gin tônica como bebida popular se tornaram marcas identitárias desse lugar tão especial que de pai para filho é sinônimo de bem receber e servir. Desde os anos 60, o “seu Peter” tornou-se uma referência para todos os velejadores a quem socorria e recebia de braços abertos. Um espaço que mais do que uma empresa familiar, um comércio, é visto pelos navegantes dos sete mares como um templo, onde a hospitalidade fez a sua morada, uma paragem onde o mundo se encontra, em torno de uma pequena mesa, uma boa conversa, encontrar amigos e retemperar energias para novas aventuras. Entre àquelas paredes repletas de bandeiras, galhardetes e fotos, muitos iatistas que por ali passaram deixaram um pouco de si. No fundo do bar, junto ao balcão esquerdo, uma caixa serve como “posta restante universal” recebendo cartas, postais, mensagens, informações enviadas aos navegantes. Assim, pouco a pouco, foi se construindo a fama do Peter e divulgado sua mítica pelo mundo afora.
José Henrique Gonçalves Azevedo, filho do Peter, em 1978 assume ao lado do pai a gestão do Café Sport mantendo a tradição familiar. Na sua administração funda em 1986, o “Museu do Peter” situado no andar superior onde está exposta a valiosa coleção de trabalhos em marfim e osso de baleia, considerada o mais importante acervo particular da arte de Scrimshaw no Mundo.
A 19 de novembro de 2005 faleceu José de Azevedo, o Peter. Um cidadão do mundo. Uma das figuras mais emblemáticas que tive o prazer de conhecer nas muitas idas ao Café Sport, sentado na sua mesa, no canto esquerdo do bar. Um homem que fez de um bar em uma ilha no meio do Atlântico Norte, um território livre para velejadores, residentes, artistas, escritores, freqüentadores de todas as latitudes e geografias. Um lugar como nenhum outro, afinal é a paragem do mundo!
Por último, cabe dizer que bar famoso situa-se numa Ilha que também é famosa por sua natureza pródiga, que transborda beleza em cenários indescritíveis e inesperados como a cratera imensa de um vulcão extinto denominada Caldeira, a paisagem parida das cinzas vulcânicas que cobriu casas e campos na erupção do Capelinhos em 1957, a Praia do Porto Prim, os campos matizados em tons de verde das pastagens e lavouras separadas por imensos cordões de hortênsias. Um azul que jorra da terra aos borbotões, que lava o nosso olhar com tamanha formosura em seu trilhar de sonhos, cheios de volteios como se embalado por compassos de uma valsa também azul. Aqui, a alma é azul, toda azul. Faial, a ilha azul, outorgou um Raul Brandão embevecido ante o azul dos azuis.
Todavia, a alma da Ilha está na sua gente, no seu jeito de ser e viver a ciranda dos dias no ritmo manso da cidade da Horta, com jeito de anfiteatro. É a sua alma que a torna única. Não é sem motivo que nas cartas náuticas do passado a Ilha do Faial foi nominada de “Insula Ventura.” Portugueses e flamengos fizeram desta Ilha e da cidade da Horta uma terra “venturosa”. Basta alargar o olhar para a riqueza de seu patrimônio cultural, caminhar sem pressa por suas calçadas mosaico, desenhos brancos sobre negro da lava, admirar sua arquitetura ubana, o encantador casario, casas solarengas que ainda guardam “postiguinhos” na varanda, onde as moças casaidoras namoravam. Lembrança de um costume retido na memória cultural de uma cidade que foi berço de Manuel José de Arriaga, primeiro Presidente Constitucional da República Portuguesa (1911-1915) e que inspirou Vitorino Nemésio a recriar no romance Mau Tempo no Canal (1944), considerado a obra prima da ficção portuguesa, a atmosfera social e cultural da Horta de 1918, ano que o jovem Vitorino Nemésio ali completou o curso geral dos liceus.
Sabe bem o graciosense Victor Rui Dores, escritor, professor, homem de teatro ao falar apaixonado da sua ilha adotiva:“Minha ilha marinheira, de cabelos desalinhados pelo vento. És apetecível como a quilha de um barco. Ou como a boca que sabe a cerveja. Ou como o gin tónico da amizade universal. Os turistas nunca compreenderão as cinzas aquietadas do teu Vulcão, nem a catedral do silêncio da tua Caldeira. A tua verdade mais profunda está na luz marítima da tua cidade da Horta” ( Faial in: Visões das Ilhas,2004).
Não preciso dizer mais nada. Anseio por voltar a Horta, sentar no Bar do Peter e no meio daquele burburinho todo tentar ouvir as histórias do mar do navegador Genuíno Madruga, saborear um Gin tônica olhando o mar e o Pico, majestoso, violeta à luz do poente, a Horta iluminada excede em boniteza.
O Peter Café Sport, a paragem do mundo só poderia ter por endereço a linda Ilha do Faial.


Lélia Pereira S.Nnunes
Setembro de 2011
(* Integra a coletânea de textos do livro
Na Esquina das Ilhas)

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