
Todavia, se as opiniões se dividem e as dúvidas
permanecem, existe um ponto em que todos estão de acordo: a tradição vigora há
quatro séculos e aparece ligada ao período das grandes erupções vulcânicas do
pico do Sapateiro (actual pico Queimado), que assolaram a ilha de São Miguel,
tendo a lava destruído tudo o que encontrava pela frente, particularmente nas
freguesias da Ribeira Seca e de Santa Bárbara (na então Vila da Ribeira Grande,
hoje cidade e sede do concelho) e Vila Franca do Campo (situada no lado sul da
ilha).
Descendo da encosta e galgando o pequeno povoado, a lava,
ao atingir o ponto onde se erguia a Capela de São Pedro, na Ribeira Seca,
separou-se em duas torrentes, para ladeá-la sem a molestar, e daí correu até ao
mar durante três dias e três noites, dividindo assim o areal em dois (um só,
até então): o areal de Santa Bárbara da Ribeira Seca e o da Ribeira Grande.
Apercebendo-se o povo da enorme destruição e o facto de
nada haver ocorrido à capelinha de São Pedro, tomou, naturalmente, o acontecido
como um milagre. Esta calamidade, associada à tradição das Cavalhadas, é
contada, popularmente, da seguinte forma: certo fidalgo, senhor de um belo
palácio em Vila Franca do Campo, temendo os boatos que então circulavam de que
estariam para acontecer novas erupções, ao lembrar-se do milagre da capelinha
de São Pedro, receoso pelo seu palácio, pela sua vida e a dos seus, resolveu
subir às montanhas da vila, juntamente com os mordomos do Espírito Santo, para
rezarem em conjunto, prometendo que se o seu palácio, a sua vida e a da sua
família fossem poupados a novos cataclismos faria o voto perpétuo de
deslocar-se todos os anos no dia de São Pedro à sua capela, na Ribeira Seca,
para louvá-lo e cantar-lhe passagens da vida do próprio santo.
Poupados que foram o palácio e a vida dos seus ocupantes,
começou o fidalgo a cumprir todos os anos, no dia 29 de Junho, a sua promessa,
sempre com a maior pompa e solenidade, vistosa e ricamente vestido, montado num
belo cavalo, fazendo-se acompanhar dos seus vassalos e dos mordomos do Espírito
Santo. Partindo de Vila Franca do Campo, dirigia-se primeiro à freguesia de
Ribeira Seca e dali para a capela de São Pedro (a dois quilómetros da pequena
vila), onde fazia a apresentação da embaixada que o acompanhava e declamava as
loas cantadas à porta do templo. De seguida dava sete voltas rituais à ermida,
interpretadas como os sete dons do Espírito Santo: sapiência, entendimento,
conselho, fortaleza, ciência, piedade e temor a Deus.
Com o correr dos anos o povo começou a juntar-se na
capela de São Pedro para assistir ao ritual, começando também, grato pelos
milagres do santo, a homenageá-lo nessa data, enfeitando-lhe o templo com
hortênsias azuis e ofertando-lhe as tradicionais «alâmpadas» açorianas,
constituídas por arranjos de flores naturais (hortências, agapantos,
rosas-de-cacho) misturadas com as «novidades» de cultivo (maçarocas, pepinos,
peras, etc.).
Como a devoção aumentava e o cerimonial das Cavalhadas se
mantinha, a capela de São Pedro (do século XVI) começou a tornar-se pequena,
acabando por construir-se uma nova igreja (séculos XVIII-XIX). Ainda hoje o seu
interior continua a ser profusamente ornamentado com as «alâmpadas», a darem um
colorido, um perfume e uma beleza especiais ao templo. Estes arranjos florais
com frutos terão começado a ser concebidos por altura das primeiras Cavalhadas
e do início do culto a São Pedro, constituindo uma oferta votiva do povo ao
santo que tão festiva e singularmente se venera na Ribeira Seca.
Por morte do fidalgo, e no desejo de continuar a
manter-se o voto perpétuo, o povo da Ribeira Seca chamou a si a devoção em
honra do Santo Pescador. Assim, as Cavalhadas de outros tempos, onde desfilavam
fidalgos e vassalos, deram lugar aos homens do campo (principalmente), na sua
maioria residentes nas freguesias da Ribeira Seca e de Santa Bárbara.
A manter viva a remota e significativa tradição, o
desfile (chegando a reunir cento e vinte cavaleiros, embora o seu número seja
variável), sai do solar de Mafoma (palacete do século XVIII, onde está
instalado o Museu do Chá) para percorrer em colorido cortejo no dia de São
Pedro (patrono da Ribeira Seca e feriado municipal na Ribeira Grande) a pequena
freguesia e as que lhe são vizinhas. Os cavaleiros desfilam pelas ruas em duas
alas, com os trajos a contribuir para a originalidade da festa: camisa branca,
calça branca com lista vermelha lateral, gravata vermelha, uma faixa também
vermelha em banda sobre o peito, flores e grandes laços de fitas de cores
colocados no peito e nos ombros. Na cabeça usa chapéus altos pretos, adornados
com objectos de ouro (principalmente fios, cordões e pulseiras) e diversos
enfeites, entre eles minúsculas florinhas feitas de papel prateado. Numa das
mãos levam um pendão vermelho com as letras SP (São Pedro) e na outra as rédeas
do animal, enfeitado com uma espécie de xairel branco e laços de diversas
cores. As Cavalhadas de São Pedro na Ribeira Seca chamam à localidade muitos
dos habitantes de São Miguel e das restantes ilhas açorianas, bem como
forasteiros idos um pouco de todo o lado.
Fonte: http://sarrabal.blogs.sapo.pt/cavalhadas-de-sao-pedro-acores-157097
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